A pixação deve se tornar Patrimônio Imaterial de São Paulo?

andré carvalho
8 min readJan 23, 2017

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”Onde há vida popular razoavelmente articulada e estável, há sempre uma cultura tradicional, tanto material quanto simbólica, com um mínimo de espontaneidade coerência e sentimento, se não consciência, de sua identidade.“ Alfredo Bosi

A pixação[1] faz parte da paisagem urbana de São Paulo desde o fim dos anos 70, começo dos anos 80. É um personagem da cidade que não tem preconceito, ocupa paredes públicas e privadas, intervindo em prédios murros, viadutos, ruas, hidrantes e tudo mais que possa receber uma camada de tinta. A pixação é um tipo de expressão que ajuda a ocupar a cidade, e muitas vezes, essa ocupação gera atrito com outras forças atuantes na cidade. Uma força sempre presente na ocupação da cidade é o que o francês Henry Lefebre chama de Festa:

“A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma vantagem além do prazer e do prestígio, enormes riquezas em objetos e dinheiro).” (LEFEBRE, 2011).

A pixação é uma forma do morador da periferia interferir nessa Festa, e isso muitas vezes é interpretado como uma perda de privilégio das classes dominantes que não aceitam muito bem que seu local seja ocupado por outras classes. Essa invasão de outro gosto enche de ódio o pensamento conservador, que acha a pixação feia, desagradável e só serve para "sujar a cidade". O caráter ilegal da pixação é sempre destacado pelo discurso conservador como o motivo pelo qual ela deve ser apagada da cidade, mas no fundo, isso é só parte do discurso que não quer que a cidade seja ocupada pelos seus moradores, principalmente pelos que são da periferia. Vale a pena quem tem interesse no assunto visitar o site www.pichacao.com, que trata da descriminalização da pixação e tem uma boa bibliografia e ótimos argumentos sobre o assunto:

Cripta Djan explica bem a relação do pixador com a cidade em seu site pessoal ( http://www.criptadjan.com/new-page-49/ ), o que reafirma a questão que o ódio contra o pixo é um tipo de ódio indireto à ocupação da cidade pela periferia:

“O que pra uns é vandalismo, pra nos é (re)apropriação, o pixador é o artista urbano que vê a cidade como suporte. Estamos nos (re)apropriando de uma cidade que foi negada a nós. O pixo é a retomada da cidade por parte dos excluídos. Cada parede pixada é sinônimo de insatisfação social, se agrada ou desagrada já é outra questão, o importante mesmo é que incomode. A pixação pede mais do que passagem, pede permanência, como pedra lascada e não polida. Como um conceito, e não inconsequência pede solidez e clama por respeito, e se assim não for o pixo vai pegar.”

A pixação, como bem define Gustavo Lassala: “não define um padrão estético — em relação a forma e conteúdo. … A produção em si é aleatória e anárquica, permitindo qualquer um atuar com as mais diversas ferramentas para desenhar, pintar, escrever e rabiscar” (LASSALA, 2010, p. 35). Mesmo assim, dentro desse caos todo que inclusive torna desnecessário diferenciar pixação de grafite, alguns estilos são muito notáveis. Entre eles, um dos mais presentes na paisagem urbana de São Paulo é pixo reto (ou tag reto). Esse estilo de tag já foi transformado em fonte tipográfica, como a fonte Adrenalina[2], design do Gustavo Lassala, tem uma estética facilmente reconhecível tem como características:

“traços simples que possam ser feitos rapidamente com rolo de tinta ou spray. Essa economia de gestos aproxima a caligrafia das ruas da tradição caligráfica formal, e até de um suposto arquétipo que aproximaria todas a letras pela experiência prática. Os instrumentos devem ser pequenos e caber dentro de uma mochila, para conferir mais agilidade nos rolês (a velocidade diminui o risco das ações e alastra a assinatura por uma área maior).” FILLARDO, 2015.

Essa linguagem gráfica simples e de fácil reprodução se tornou aos poucos o estilo do pixação dominante na cidade de São Paulo. Só por sua presença, ignorando sua força como linguagem visual o pixo reto deveria ser respeitado como uma forma de expressão cultural estritamente paulistana, e como tal, merece respeito e cuidados. Mesmo sendo uma prática estritamente ilegal, a pixação merece ser destacada como um bem cultural paulistano, sendo assim, no lugar de ser tratado como algo nocivo a cidade, deveria ser levado a Patrimônio Imaterial do Estado de São Paulo. Segundo o IPHAN[3], patrimônio imaterial é:

“Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial.

Nesses artigos da Constituição, reconhece-se a inclusão, no patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria com a sociedade, dos bens culturais que sejam referências dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. O patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.”

As características culturais e estéticas da pixação se encaixam nos quesitos necessários para que essa prática se torne Patrimônio Imaterial de Paulista. Creio que seria justo uma campanha a favor disso como resposta à guerra que o prefeito quer criar com os pixadores de São Paulo.

Seguem alguns exemplos de paredes pixadas que tornam São Paulo a cidade que é. São Paulo não é Miami, que o cinza não vença!

Fotos por André Carvalho: andreod.com

Bibliografia

FILLARDO, Pedro. Pixação (pixo), histórico (tags), práticas e a paisagem urbana. Vitruvius, ano 16, dex 2015. Visitado em 23 de janeiro de 2017. http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5881

LASSALA, Gustavo. Pixação não é pichação. São Paulo: Altamira Editorial, 2010.
________________. Em nome do pixo: a experiência social e estética do pichador e artista Djan Ivson / Gustavo Lassala. 2014. Doutorado (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) Universidade Mackenzie, São Paulo, 2014.

LEFEBRE, Henry. O direito e a cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

[1] Escolhi aqui a grafia pixação porque pixação é como se chama esse tipo de intervenção urbana em São Paulo, como reforça Lassala: “Pixação refere-se a um tipo de intervenção urbana ilegal nativa de São Paulo; sua principal característica é o desenho de letras retilíneas escritas com spray ou rolo de espuma para estampar logotipos de gangues ou indivíduos.” (LASSALA, 2014, pg. 11).

[2] Fonte Adrenalina: http://www.myfonts.com/search/adrenalina/

Fonte Adrenalina, designer Gustavo Lassla. MyFonts.com

[3] http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234

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